sábado, 16 de maio de 2009

Em Defesa da Cultura Taurina e da Sorte de Varas

O debate sobre a legalização da sorte de varas nos Açores sucede num momento em que a cultura taurina sofre, em Portugal, uma forte ofensiva dos sectores antitaurinos.

O debate em torno da sorte de varas é, para a maioria dos sectores que a contestam, apenas um pretexto para atingirem o objectivo final que perseguem com afinco: a proibição de todas as manifestações da tauromaquia. De todas! Desde as touradas de Praça, às touradas de corda. Essa é a agenda escondida da maioria esmagadora daqueles que combatem esta iniciativa que visa restabelecer a sorte de varas nos Açores.

De outro modo, como se explica que possam estar contra a sorte de varas e a favor da colocação de bandarilhas no dorso do toro? Como se explica que estejam a favor das touradas à corda – que também provocam um conjunto de lesões aos animais – e discordem só da sorte de varas?

Colocados perante estas incongruências, os mais afoitos dirão que umas são tradicionais e outras não. Dirão que umas possuem um forte apoio popular e outras não. Ora, são precisamente estes os argumentos que os movimentos antitaurinos mais contestam e relativizam. Para eles, nem a tradição, nem o gosto popular, podem sobrepor-se ao seu conceito de civilização.

Os defensores do fim das touradas consideram-se imbuídos de uma clara superioridade civilizacional. Para eles, os aficionados das toradas são uma espécie de Neandertais modernos.

Nesse sentido, nada os distingue os líderes dos movimentos antitaurinos dos imperialistas europeus que impuseram, com a Bíblia numa mão e a espingarda na outra, os seus dogmas civilizacionais aos povos africanos, asiáticos e ameríndios. No fundo, não são mais que novos inquisidores, guardiões dogmáticos de uma moral e de um conceito civilizacional que não admite a menor discrepância.

Para estes novos torquemadas, não importa que a tauromaquia seja interpretada, com outra sensibilidade, por quem a vive e a conhece. A sua particular visão da moral e dos costumes é incontestável e de aplicação universal.

Para eles não importa que a ida a uma tourada esteja dependente do livre-arbítrio de cada pessoa. Para eles não é possível o velho adágio popular: só vai quem quer. Não lhes chega a independência da sua posição individual a respeito da opção de assistir, ou não, a uma tourada. Querem mais! Querem definir, de forma totalitária, que tipo de espectáculo podem os outros ver.

Se cedermos nesta batalha, seremos confrontados com um interminável programa totalitário, definido por aqueles que se arrogam o direito de decidir por todos.

O que os impedirá de proibir a caça, actividade ancestral do homem? O que os impedirá de proibir a pesca? O que os impedirá de fazer uma nova lei seca, para evitar os danos provocados no ser humano pelas bebidas alcoólicas? O que os impedirá de proibir a actividade equestre, em que o homem viola a independência do cavalo – domando-o e colocando-lhe arreios e selas desconfortáveis – e o utiliza por motivos exclusivamente lúdicos. O que os impedirá, no limite, de proibir que os seres humanos matem e comam outros seres vivos.

Se a sorte de varas for legalizada neste Parlamento, não estaremos a impor nada a quem não gosta desta prática tauromáquica. Quem não gosta pode, simplesmente, optar por não assistir a este tipo de eventos. Pelo contrário, se esta iniciativa legislativa for reprovada estará a negar-se a um grupo de cidadãos a possibilidade de assistir a uma prática que valorizam no âmbito da diversidade da expressão tauromáquica.

A diferença é transcendental. Mesmo depois de aprovada a lei, permanecerá a liberdade de se poder assistir, ou não, à sorte de varas. Se, pelo contrário, for mantida a proibição, não existirá qualquer liberdade de escolha. Um grupo de homens imporá, a todos os outros – por puro preconceito –, as suas crenças, a sua sensibilidade e dogmas civilizacionais.

A tauromaquia inspirou decisivamente as obras-primas de referências culturais como Garcia Lorca, Ortega y Gasset Hemingway, Goya, Camilo Jose Cela, Picasso, Vargas Llosa, Salvador Dali e, porque não, desse grande poeta da liberdade que é o Manuel Alegre. Sem eles, e sem a tauromaquia que os inspirou, a civilização humana perderia, certamente, alguns dos momentos geniais que a caracterizam.

No entanto, nada disto belisca a pretensa superioridade civilizacional de que os movimentos antitaurinos se arrogam. Salvador Dali e Picasso definiram e reconheceram tauromaquia como arte e eu considero que existem boas razões para que estas opiniões sejam pelo menos tão valorizadas como a do Sr. Moutinho, Presidente da “Animal”, que pensa preciosamente o contrário.

Existiu um grande toureiro que sintetizou estas coisas com uma frase lapidar que quero dedicar ao Sr. Deputado Aníbal Pires, ilustre adversário nestas lides:”temos de nos desenganar, nisto das touradas, uns sabem o que dizem e outros dizem o que sabem”.

A este respeito, analisemos o debate público que ocorreu nos Açores. Em primeiro lugar, reconheça-se a chantagem a que quiseram submeter este Parlamento. Argumentam eles que o Estatuto passará a estar em causa se aprovarmos algo que contrarie a suposta vontade dos órgãos de soberania nacionais.

Ora, este é um argumento inaceitável. Se a ele sucumbíssemos, passaríamos a ser o Parlamento do medo e as nossas consciências passariam a ser reféns de uma censura auto-infligida.

Temos competências de autogoverno que foram duramente conquistadas pelos que nos antecederam. Desonraríamos os seus esforços e a sua memória se, a propósito deste ou de qualquer outro assunto, não agíssemos de acordo com a nossa consciência e nos deixássemos amedrontar. Vamos, obviamente, decidir, neste e em qualquer outro assunto, de forma livre, no respeito pelo Estatuto e pela Constituição.

Os que não aceitam a diversidade cultural e o direito identitário dos outros, além de apelarem ao medo, iniciaram uma vergonhosa campanha de chantagem contra as gentes açorianas de Angra do Heroísmo, ameaçando o seu estatuto de Cidade Património Mundial.

Enganaram-se, mais uma vez. Não é essa a estirpe dos açorianos. Ninguém viu – nem algum dia verá – os açorianos a deliberarem contra as suas convicções e crenças, devido a qualquer tipo de ameaça.

Não tendo resultado a campanha dos sumo-sacerdotes da moral única e do medo – cujas acções dizem tudo em relação à sua natureza não democrática –, resistem alguns argumentos que importa rebater.

Argumentam alguns, que a aprovação da sorte de varas prejudicará o potencial turístico da Região. Não se vê como. Os turistas que não gostam de touradas, ou da sorte de varas em particular, só terão de fazer o mesmo que devem e podem fazer os que não gostam: não assistir às touradas de praça. Estas realizam-se, como se sabe, em recinto fechado e pago.

Este último argumento cai por terra quando se constata que a França e a Espanha – respectivamente o primeiro e terceiro destinos turísticos mundiais – realizam a sorte de varas nos seus espectáculos taurinos, algo que fazem todos os países taurinos, com excepção de Portugal. Os factos demonstram que, longe de constituírem uma desvantagem, as touradas constituem um factor muito relevante e valorizada da oferta turística destes países.

Basta, aliás, ver a adesão dos estrangeiros às actuais touradas de corda e de praça na ilha Terceira para se constatar que os espectáculos taurinos são um factor de desenvolvimento do turismo e não o contrário. Um espectáculo cada vez mais visto e com cada vez mais aficionados, ao contrário do que nos querem fazer querer.

O outro argumento recorrente é que se trata de um espectáculo conotado com determinado espaço ideológico, no caso a direita. Escusado será dizer que se trata de outro argumento falacioso. Os aficionados do espectáculo taurino pertencem a todo o espectro partidário dos Açores e de Portugal.

Personalidades de esquerda tão relevantes como o Dr. Mário Soares, o Dr. Jorge Sampaio, o Dr. Vera Jardim, o deputado Jerónimo de Sousa e tantos outros a que não posso aqui fazer referência, são aficionados confessos das touradas.

A mesma imagem se pode extrapolar aos territórios e gentes do país taurino que somos. Salvaterra de Magos, o espelho da gestão municipal do Bloco de Esquerda em Portugal, é o concelho mais dinâmico do país no âmbito da tauromaquia. Aqui, das duas uma: ou alguém desistiu de ser profeta na sua terra, ou então alguém fez sua a célebre máxima: faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

O caso de Barrancos, concelho gerido pelo PCP à data da legalização dos touros de morte, é outro bom exemplo de que os aficionados da festa de touros constituem, sem excepção, uma comunidade dispersa por todo o espectro partidário português.

Estamos a meio caminho entre a Europa (Portugal, Espanha e França) e a América taurinas (Venezuela, Equador, Peru, México e Colômbia), facto que unido à vontade e capacidade de afirmação dos aficionados açorianos, poderá colocar os Açores, em especial a ilha Terceira, no centro da tauromaquia mundial.

Aliás, esse caminho de afirmação internacional já começou a ser trilhado com enorme êxito. Recentemente realizou-se, na ilha Terceira, o Fórum Mundial da Cultura Taurina. Este evento constitui um sucesso de enorme dimensão. De tal forma a vitalidade da cultura taurina açoriana marcou os presentes, que as conclusões desse evento constituem o núcleo central de argumentos que compõem a candidatura da Festa de Touros a Património Cultural Imaterial da UNESCO, deliberada no passado mês de Abril.

Na verdade, é isso que está hoje em discussão neste Parlamento. Devemos, ou não, quebrar uma proibição que não nos permite aceder a condições de excelência na tauromaquia?

Eu não tenho dúvidas que devemos. Devemos fazê-lo com a coragem e a convicção de que estamos a defender um grande património artístico, de enorme relevância ecológica, cultural e ética.

Um património de origem milenar que deve ser preservado enquanto factor de diversidade cultural e de identidade específica dos povos que o preservaram ao longo da história.

No limite, devemos, neste Parlamento, afirmar os Açores como uma terra que garante a liberdade de pensamento e reconhece o relativismo e validade dos valores, usos, crenças e práticas sociais de todos.

Devemos, em síntese, levantar as proibições e dar a todos a liberdade de escolher a expressão da Festa de Touros que cada um quer ver. Sem censores. Sem donos absolutos da razão. Sem que uns poucos, decidam por todos.