quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Recomendação ao GR para que adquira objectos de valor cultural e patrimonial da população corvina

Senhor Presidente
Srs. Deputados
Srs. Membros do Governo


Sou neto de gerações e gerações de camponeses analfabetos. Gente simples, digna e generosa que construiu, com as mãos gretadas do trabalho árduo de muitas gerações, a extraordinária lenda deste país pequeno com uma história tão velha como grandiosa.


Sou neto daqueles cujo nome a História não escreveu e não lembrou. Sou neto daqueles que ganharam heroicas batalhas de sobrevivência contra a miséria, o abandono, a ignorância, a falta de oportunidades e a desigualdade.


Sou neto daqueles camponeses anónimos que combateram, em nome de Portugal, na imensidão Amazónica, no implacável sertão africano, no imprevisível Golfo de Ormuz e no impossível sonho indiano.


Sou neto e filho desse povo cuja memória quero homenagear. O mesmo povo que, nestas latitudes, protagonizou a extraordinária proeza de habitar, construir e fazer os Açores, ao longo de meio milénio, num improvável e minúsculo pedaço de rocha perdida na imensidão atlântica.
Um pedaço de terra longe de tudo e de todos. Uma fração dos Açores habitada por um povo irrepetível. Um povo com não mais de 300 derradeiros moicanos, os últimos da sua estirpe. Um povo que protagonizou uma epopeia pouco conhecida de gente calada e de gente esquecida. Mas um povo com História. Uma grande História!



Senhor Presidente
Srs. Deputados
Srs. Membros do Governo



Muitas vezes, demasiadas vezes, a cultura e a memória são desprezadas por políticos pequenos, aprisionados no horizonte acanhado do quotidiano. A preservação, ou não, da identidade cultural e da memória histórica é a diferença decisiva que marca a fronteira definitiva entre o ser ou não ser dos povos. A diferença entre ter passado para ganhar o futuro e não ter futuro porque não se tem passado. Em última análise, a diferença entre permanecer ou deixar de ser.


Mas este Governo Regional tem alguma noção da História. Este Governo sabe – não pode deixar de saber - que a nossa alma, a alma do povo açoriano, é a amálgama dos homens, da terra, do mar, da fé e da coragem.


Este Governo sabe que é crucial preservar a memória, os objetos e as realizações culturais dos nove povos insulares que constituem os Açores. Este Governo sabe e é consciente disso. Por isso, o seu Presidente disse e escreveu um dia que “uma terra sem museu pode ser perigosamente confundida com uma terra sem História”.


A ilha do Corvo é a única comunidade insular açoriana a quem este Governo ainda não reconheceu, ao fim de 15 anos, a sua singularidade histórica.


Digo isto porque que ao negar-se-lhe o seu museu, se lhe negou, em simultâneo, a dignidade do seu percurso histórico. Negou-se-lhe o seu papel na História dos Açores. Negou-se a memória a dezenas e dezenas de gerações de corvinos que escreveram extraordinárias páginas de solidariedade e de sobrevivência.


Os móveis do Corvo podem não ser os melhores e mais bonitos do mundo, mas são, certamente, um arrojo de simplicidade e testemunhas privilegiadas de uma História extraordinária.


Os teares corvinos podem não ser os mais complexos do universo, mas através dos sulcos da sua madeira carcomida conta-se a comovente história de gerações de mulheres infatigáveis, com longas vigílias roubadas ao descanso e ao sono. Aquelas mulheres que Raul Brandão descreveu como “mulheres ativas e espertas. Todas cardam e todas fiam, e quase todas, num tearzinho rudimentar, fabricam o pano de que se vestem a si e aos seus homens. E fiam muito bem e tecem muito bem”.


As fechaduras do Corvo podem não ser as mais seguras da humanidade, mas ganham a todas as outras como provas materiais de uma sociedade onde triunfou a exuberante estética da confiança.


As barretas corvinas podem não ser as mais cómodas da civilização mas - com os seus totós e o seu padrão - constituem um testemunho inesperado das eternas cumplicidades tecidas num Atlântico feito de distâncias e de encontros.


Não se encontrará, nos objetos corvinos de valor cultural e patrimonial, uma cultura de grande esplendor material e ostentação. Não foi essa a História do Corvo! Pelo contrário, e com toda a evidência, fala-se aqui de uma singular sociedade comunitária. De um povo de sobreviventes, num difícil cenário de sobrevivência.



Senhor Presidente
Srs. Deputados
Srs. Membros do Governo



Não se pode decretar o fim da História no Corvo. Não se pode porque é injusto. Não se pode porque é cruel para a memória do povo. Não se pode porque é errado. Não se pode, em definitivo, porque é impossível. A História é eterna e quem a nega é apenas comparável a uma efémera briza que já passou.


Meus senhores! Há muito que luto para que seja construído um museu na ilha do Corvo. Há muito que assinalo a injustiça que se está a cometer com aquele povo. Desde as eleições de 2000 - o primeiro ano em que concorri a umas eleições regionais - que a construção de um museu na ilha do Corvo faz parte dos meus programas eleitorais.


Lembro-me que, em 2005, numa reunião do Conselho de Ilha do Corvo, o então Diretor da Cultura, visivelmente irritado com a minha insistência no assunto do museu, citou-me e endereçou-me uma famosa frase do Presidente Kennedy: “Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta antes o que podes tu fazer pelo teu país”.


Vivemos, atualmente, tempos muito difíceis em Portugal e nos Açores. Com a carga fiscal a que estamos submetidos e o recuo dramático dos serviços do Estado em todas as áreas, a verdade é que o Estado já pouco faz pelas famílias e as famílias pouco mais podem fazer pelo Estado.


No entanto, confesso, jamais esqueci o desafio que me foi então lançado. Ao longo de todos estes anos continuei, sempre, a insistir na construção de um museu na ilha do Corvo.


Apresentei, em 2006, essa proposta na Assembleia Municipal do Corvo. Repeti, de forma sistemática, essa pretensão em todos os Conselhos de Ilha do Corvo em que participei, juntamente com o Governo Regional.


Já como deputado regional apresentei um Projeto de Resolução nesse âmbito e insisti, sempre, na apresentação de propostas de alteração ao Plano Anual Regional que viabilizassem a construção de um museu na ilha do Corvo. Agora, no âmbito deste Projeto de Resolução, defendo a aprovação de uma recomendação ao Governo Regional para que o mesmo realize um levantamento exaustivo e adquira objetos de valor cultural e patrimonial da ilha Corvo.


No âmbito da discussão do último Plano – e por proposta do PPM – a Assembleia Legislativa aprovou, por unanimidade, a criação de uma nova rubrica orçamental, no valor de 50 000 Euros, que se destina, precisamente, a adquirir o que hoje aqui propomos.


Foi um passo importante, na direção certa. Por isso peço que se aprove hoje este Projeto de Resolução, no sentido de tornar urgente e efetiva a aquisição desse património.


Vou, no entanto, dar hoje mais um contributo para garantir que a construção do museu da ilha do Corvo não voltará a ser adiada novamente. Assim, informo que doarei à Região Autónoma dos Açores um edifício que possuo na Vila do Corvo, com o fim de que aí se possa instalar o futuro Museu da Ilha. Esta doação é irreversível e tornar-se-á efetiva nos próximos dias.


Trata-se de um edifício que precisa, neste momento, de uma grande intervenção, mas que possui uma ótima localização e um considerável interesse patrimonial, uma vez que se trata de um edifício classificado, cuja construção inicial data do século XVII.


Não quero, e peço para não ser, mal-interpretado neste gesto. Eu sei – penso que todos sabemos - que ninguém ganha eleições por prometer a construção de museus, muito menos nas presentes e dramáticas circunstâncias sociais. O meu gesto é apenas a iniciativa de alguém que quer dar o seu contributo a um projeto que é justo e que é necessário.


O que agora faço é insignificante quando comparado com o que fazem, todos os dias e de forma anónima, milhares de açorianos. Estas são as ilhas do Espírito Santo, a terra mais solidária do mundo. Por isso, eu não sou ninguém e não quero e não mereço ser exemplo de nada. Luto apenas pelo que acho que é justo. É só isso e não mais do que isso.


Vivemos momentos muito difíceis do ponto de vista económico e social. Mas deixem-me recordar que, mesmo nos momentos mais difíceis da II Guerra Mundial, os teatros e os museus continuaram abertos em Londres ou em Moscovo. A nossa cultura e civilização nunca devem perder o estatuto de prioridade. Sem elas, ou com o seu retrocesso, o futuro nunca poderá igualar o passado.


Tomei, agora, esta atitude porque posso não ter outra oportunidade de influenciar, de forma decisiva, a resolução desta questão pela qual, ao longo de tanto tempo, me tenho empenhado. Não sei se daqui a 10 meses continuarei aqui. A eleição de parlamentares por pequenos partidos é muito incerta e esta pode ser, de facto, a derradeira oportunidade de ajudar a ultrapassar uma grande injustiça.


Devolvo assim ao Governo Regional – um pouco modificada e tematicamente circunscrita - a frase do Presidente Kennedy que há seis anos me foi citada: não deixes que te perguntem apenas o que podes fazer pela tua Região, tens também o direito a perguntar o que pode a tua Região fazer pela preservação da memória de todos e cada um dos povos das nossas ilhas.


Termino Sr. Presidente e Srs. Deputados. Quando regressar às minhas aulas de História na ilha do Corvo – não sei se agora, se daqui a pouco – vou continuar a dizer àqueles miúdos que são herdeiros de uma grande História. De uma História da qual se podem e devem orgulhar.


Que são netos e netas de grandes homens e de grandes mulheres. De gente admirável. De gente que já tem um museu no coração de todos os que tiveram a fortuna de os conhecer ou que partilham a cumplicidade das velhas histórias contadas em família.


Mas o que é justo é que se levante um museu à sua memória. Para que nunca se esqueça. Para que jamais sejam esquecidos. Para que ninguém duvide que o Corvo “é na Terra, não é na Lua”.


Muito obrigado!



O Deputado

Paulo Estêvão


Discurso de apresentação do Projecto de Resolução "Recomenda ao Governo Regional que adquira objectos de valor cultural e patrimonial que possam testemunhar o percurso histórico, a identidade etnográfica e as práticas culturais específicas da população corvina"

A defesa da construção de um museu na ilha do Corvo