quarta-feira, 29 de abril de 2015

Artigo de Opinião: "O fundamentalismo islâmico"

A opinião pública ocidental está absolutamente chocada com as notícias que divulgam os atos bárbaros que todos os dias são cometidos pelo Daesh (Estado Islâmico). Os relatos dos massacres perpetrados contra as populações cristãs e outras minorias religiosas do Médio Oriente e os vídeos das decapitações dos reféns “teletransportam” a humanidade para a idade da barbárie que antecedeu a emergência do islão na Península Arábica. Nos últimos dias, o Daesh destruiu a cidade assíria de Nimrud e as antigas estátuas assírias da cidade de Mossul, tesouros culturais de valor inestimável.
Nada disto tem muito a ver com a religião islâmica. Os fanáticos do Daesh - que reclamam o regresso aos valores originais do islão - deveriam perguntar-se por que razão, 1400 anos depois da emergência do Islão, ainda existem minorias cristãs no Médio Oriente e vestígios materiais das grandes civilizações do Crescente Fértil, berço da nossa civilização. A resposta é óbvia. A civilização islâmica, mesmo nos seus primórdios, procurou a hegemonia política e religiosa, mas nunca advogou a completa destruição das outras religiões e culturas. A verdade é que o Império Islâmico constituiu a civilização mais avançada e tolerante do seu tempo       
Aliás, o Califado Islâmico caracterizou-se, precisamente, pela sua extraordinária tolerância religiosa e pela sua capacidade para absorver os contributos culturais de todos povos que integraram o seu espaço territorial e civilizacional. A prova que assim foi é, justamente, a secular permanência de fortes minorias cristãs na zona e a extraordinária preservação dos vestígios das grandes civilizações da Antiguidade.
A verdade é que o Daesh pode, agora, destruir estátuas milenárias, pela simples razão que ninguém as destruiu ao longo dos últimos três mil anos, apesar da hegemonia secular do islão na zona. Isto deveria dar que pensar a estes fanáticos, mas a verdade é que não vale a pena alimentar ilusões a esse respeito. 
Na Europa todos estes acontecimentos alimentaram um certo preconceito em relação ao Islão. O Islão surge agora associado, aos olhos da opinião pública, à intolerância e ao fanatismo. Já vimos que esta visão não corresponde à realidade. Veja-se só que, apesar de vastas regiões da Europa terem estado, num momento ou outro da sua História, sob o domínio de potentados islâmicos – é o caso da Península Ibérica, da Sicília e dos Balcãs – quase não sobreviveram minorias muçulmanas no Velho Continente, com exceção dos casos albanês, kosovar e bósnio.
Nos dois últimos casos referenciados, as populações muçulmanas foram mesmo alvo de limpeza étnica por parte de forças sérvias radicais. Na Península Ibérica, as populações muçulmanas - presentes no território peninsular desde o século VIII - foram quase inteiramente erradicadas, sendo a “expulsão dos mouriscos”, decretada em 1609, o episódio mais conhecido. A Europa não tem qualquer legitimidade histórica para dar lições de tolerância religiosa a quem quer que seja.
A respeito de lições, veja-se o que sucedeu no âmbito da chamada “Primavera Árabe”. Para o mundo ocidental, a “Primavera Árabe” era algo equiparável à “queda do Muro de Berlim”. O que é possível verificar após a queda dos regimes odiosos - mas apesar de tudo de natureza secular - da Líbia, do Iraque (cuja queda ocorreu num contexto diferente e numa data anterior), do Egipto e da Síria (que ainda resiste no quadro de uma guerra civil sangrenta), é que os sucessores dos ditadores podem não ser inteiramente recomendáveis.  
É difícil olhar para a Líbia, para o Egipto e para o Iraque e concluir que a democracia deu passos importantes nesses países. A opinião pública ocidental está hoje menos propensa a apoiar os movimentos de contestação no mundo islâmico. Nem sempre os que combatem um ditador o fazem em prol de ideais democráticos. O apoio ocidental ao regime militar egípcio é a prova que a ingenuidade, em relação à natureza da luta pelo poder no mundo islâmico, acabou.    
(artigo publicado no jornal Açoriano Oriental de 09/03/2015)